Publicado originalmente no jornal O Popular (clique aqui).
Por muito tempo, o Direito de Família no Brasil espelhou uma sociedade desigual, onde a filiação era regulada por categorias que segregavam e excluíam. A distinção entre filhos “legítimos” e “ilegítimos” não era apenas simbólica, mas produzia efeitos jurídicos profundos. Os filhos fora do casamento carregavam um estigma social e jurídico, sendo privados de direitos básicos, como o reconhecimento da paternidade.
Um dos episódios mais ilustrativos desse tempo é o caso de Teresa Acuña, filha do jornalista Assis Chateaubriand com Cora Celina Acuña. Para ter reconhecida a paternidade e obter a guarda da filha, Chateaubriand precisou de uma manobra jurídica inusitada. À época, por ainda estar casado com outra mulher, ele não podia reconhecer a filha fora do casamento e conseguir sua guarda. Para resolver o impasse, recorreu ao então presidente Getúlio Vargas.
Assim foram criados o Decreto-Lei nº 4.737/42, que passou a permitir o reconhecimento de filhos havidos fora do casamento após o desquite, e, posteriormente, o Decreto-Lei nº 5.213/43, que alterou a regra do exercício do pátrio poder, favorecendo o pai em caso de reconhecimento simultâneo. Esta última norma ficou conhecida como “Lei Teresoca”, uma legislação feita sob medida, que evidenciava como o Direito podia ser moldado a interesses individuais.
Outro episódio emblemático se deu durante o governo de Juscelino Kubitschek e igualou os direitos de filhos biológicos e adotivos no campo sucessório. Como presidente do Brasil, ele promoveu alterações significativas na legislação de adoção através da promulgação da Lei nº 3.133, de 8 de maio de 1957, que modificou o Código Civil de 1916.
O gesto de JK não foi apenas político, mas profundamente pessoal: a nova legislação foi inspirada em sua vivência com Maria Estela Kubitschek Lopes, filha de origem humilde, que ele e Sarah Kubitschek criaram desde a infância. Ao adotá-la formalmente, Juscelino precisou alterar a legislação para que tivesse sobre ela plenos direitos paternos. Posteriormente, a Lei nº 4.655/65 ainda legitimaria de forma mais robusta os efeitos da adoção, consolidando seus benefícios tanto para os adotantes quanto para os adotados.
Com o tempo, a sociedade e suas relações familiares evoluíram em vários campos. A virada mais significativa veio com a Constituição de 1988, que proibiu qualquer discriminação entre filhos e estabeleceu como pilar do ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana. Essa mudança foi reforçada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), pela Lei nº 8.560/92 e, mais tarde, pelo Código Civil de 2002, que consolidaram o direito à identidade, ao reconhecimento e à convivência familiar.
Hoje, o conceito de filiação vai muito além da origem biológica. Os tribunais já reconhecem a paternidade e maternidade socioafetivas como expressão legítima de vínculo parental. Isso significa que aquele que cria, educa, cuida e se apresenta socialmente como pai ou mãe – mesmo sem laço genético – é juridicamente reconhecido como tal.
Essa evolução demonstra algo fundamental: a lei precisa acompanhar a vida, não o contrário. As normas jurídicas não são estruturas imutáveis, mas sim, instrumentos que devem refletir as mudanças nas relações humanas. Como advogada de família, acredito que nossa atuação deve ser, acima de tudo, humanizada. A lei é como o instrumento de navegação: orienta, estabelece rotas, busca segurança. Mas quem realmente dá a direção é a família.
A legislação brasileira avança quando incorpora o afeto como elemento estruturante da parentalidade e quando reconhece que a proteção ao vínculo – biológico ou socioafetivo – é essencial para a formação de indivíduos íntegros e seguros de sua identidade. A história da filiação no Brasil, que começou marcada por exclusões e privilégios, caminha agora para um Direito mais inclusivo, plural e afetivo. Um Direito que reconhece e protege os vínculos construídos no dia a dia, com amor e responsabilidade.
Maria Luiza Póvoa Cruz é advogada especializada em Direito de Família, presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa do Ibdfam.