Publicado Originalmente no jornal O Popular (clique aqui).

A arte tem o poder de invadir nossos lares, desnudando realidades muitas vezes ocultas e inquietando nossos corações sobre os desafios que permeiam a sociedade. Aristóteles já dizia que a arte imita a vida, funcionando como uma técnica estratégica que ajuda a superar obstáculos que a natureza, por si só, tem dificuldade em vencer. Uma obra de arte pode transcender o tempo, contando histórias que sobrevivem àqueles que as viveram, eternizando as lições de uma época.

Na série da Netflix, Pedaço de Mim, somos apresentados a uma narrativa que ecoa a realidade de muitos lares brasileiros atuais. Entre os diversos dramas familiares apresentados, destaca-se a história de Inácio, interpretado pelo ator Bento Veiga. Ele é filho de Silvia (Paloma Duarte) e, juntos, formam uma família monoparental. A série traz para a sala de estar as cores da teledramaturgia, alimentando discussões sobre questões do Direito de Família com uma clareza que só a arte pode proporcionar. Apesar da complexidade dos temas abordados, como a monoparentalidade e a socioafetividade, a delicadeza dos afetos entre os personagens suaviza as arestas mais duras, tornando os debates mais acessíveis e humanos.

Silvia personifica muitas mulheres brasileiras: uma médica trabalhadora, que se dedica integralmente à criação do seu filho cego. Sua trajetória evidencia a solidão da maternidade, especialmente quando se trata de tomar decisões cruciais sobre a educação e o cuidado de uma criança com necessidades especiais. A série toca, ainda que de maneira sutil, na dolorosa questão do abandono paterno em casos de crianças deficientes. Segundo o Instituto Baresi, 78% dos pais abandonam suas famílias quando nasce uma criança com uma doença rara ou síndrome. Todos nós conhecemos esta história de alguma forma, porque ela se repete em todas as camadas sociais, infelizmente.

Dados do IBGE reforçam essa situação: em 2018, havia mais de 11 milhões de famílias monoparentais no Brasil, representando cerca de 5% dos domicílios no país. Dessas, 12 milhões de mães criam seus filhos sozinhas, e mais de 64% delas vivem abaixo da linha da pobreza. Essas estatísticas tornam-se ainda mais palpáveis quando personificadas na figura de Silvia, que representa o esforço solitário de tantas mulheres que lutam para garantir um futuro digno para seus filhos, mesmo que no caso dela, a dificuldade financeira não seja uma questão.

Mas podemos ver também como a família deles é feliz e bem resolvida, com as dificuldades inerentes a qualquer grupo familiar. Pedaço de Mim também ilumina caminhos de esperança, ao explorar a socioafetividade como uma forma bonita de mudar realidades. A médica Silvia se casa com Vicente, interpretado por João Vitti, que assume o papel de padrasto de Inácio com uma devoção que transcende títulos e convenções. Sua relação com o enteado exemplifica o direito à socioafetividade, que é cada vez mais reconhecido e valorizado no Direito de Família. Vicente não é apenas um padrasto; ele é um pai, em todos os sentidos que realmente importam. Essa dimensão da trama ressalta a importância de reconhecermos legalmente as relações baseadas no afeto, que muitas vezes superam as de sangue.

A arte, portanto, não apenas imita a vida, mas também a amplia, oferecendo novas perspectivas e incitando reflexões profundas sobre temas complexos. Famílias monoparentais e laços socioafetivos são realidades que merecem nossa visão e nossa reflexão. Em séries como Pedaço de Mim, temos a oportunidade de observar estas questões sociais e jurídicas, contribuindo para um entendimento mais empático e inclusivo de realidades que, muitas vezes, ficam na penumbra.

Maria Luiza Póvoa Cruz, advogada especializada em Direito de Família, presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa do Ibdfam.

Publicado originalmente no jornal O Popular (clique aqui).

No cenário contemporâneo, a responsabilidade parental enfrenta novos desafios com a onipresença da tecnologia digital na vida das crianças. Como avó, me vejo diante de um mundo novo e com preocupações que não tive como mãe. Mas hoje é imperativo refletir sobre o papel dos pais e educadores na mediação do uso de dispositivos eletrônicos por crianças menores de idade.

Recentemente, uma decisão inovadora no Rio de Janeiro ganhou destaque na mídia ao proibir o uso de celulares por crianças menores de 12 anos nas escolas municipais, durante todo o horário escolar, incluindo recreios e intervalos entre as aulas. Essa medida, embasada no Relatório de Monitoramento

Global da Educação 2023 da Unesco, destaca os impactos negativos do uso irrestrito dos aparelhos celulares na aprendizagem, concentração e saúde das crianças.

O Brasil, sendo um dos países que mais utiliza redes sociais no mundo, enfrenta um dilema único. Como proteger a privacidade e o bem-estar de crianças e adolescentes em um ambiente digital tão vasto e dinâmico? O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, garante direitos como privacidade e proteção da imagem, mas como aplicar esses princípios quando oferecemos ferramentas que podem expô-los prematuramente?

A intoxicação digital infantil é uma realidade cada vez mais presente. Dados da pesquisa Tic Kids Online Brasil 2019 indicam que, naquele ano, 89% da população entre 9 e 17 anos era usuária de internet, sendo 95% destes utilizando o telefone celular como principal dispositivo de acesso. A magia do brincar ao ar livre, como também viveu a minha geração e a dos meus filhos, e o contato com outras crianças têm sido prejudicados, enquanto a exposição digital aumenta.

Como advogada de família, destaco a importância da responsabilidade parental nesse contexto, mas também a importância de que se criem instrumentos legais para proteger nossas crianças. Em análise no Senado Federal, o PL 2.628/2022, de autoria do senador Alessandro Vieira e relatoria do senador Jorge Kajuru, propõe medidas cruciais para garantir a segurança on-line dos jovens no Brasil. O texto busca proibir a criação de contas em redes sociais por menores de 12 anos, estabelecendo regras específicas e mais protetivas para essa faixa etária. Além disso, aborda a necessidade de conscientização e educação para o consumo na era digital.

É claro que a lei deverá ser sempre somada à supervisão e orientação dos pais em relação ao uso seguro e responsável das plataformas de mídia social. Estabelecer limites saudáveis para o tempo de tela, monitorar o conteúdo acessado e manter uma comunicação aberta são práticas fundamentais e garantem segurança para os filhos.

A responsabilidade parental em tempos digitais não é estática e requer adaptação contínua às mudanças tecnológicas. Ao educar e apoiar as crianças para o novo tempo que vivemos, estabelecer regras torna-se fundamental.

Em resumo, a reflexão sobre o papel dos pais na era digital é urgente. A decisão no Rio de Janeiro é um exemplo de como as autoridades estão buscando proteger as crianças diante dos desafios digitais.

Instigo a sociedade a discutir e adotar medidas concretas para enfrentar esse problema, garantindo o desenvolvimento saudável das futuras gerações.

Maria Luiza Póvoa Cruz, advogada especializada em Direito de Família, presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa do Ibdfam.

Publicado originalmente no jornal O Popular. Clique aqui.

O ditado popular nos lembra que a justiça divina pode tardar, mas não falha. Em meio a um mundo marcado por guerras, intolerância, preconceito, miséria e fome, a esperança se mantém viva à medida que aprendemos e evoluímos como humanidade, passo a passo, guiados por gestos amorosos e palavras inspiradoras.

Quase uma década se passou desde um acontecimento que ecoou por nossa comunidade, gerando debates e sentimentos diversos. Quem se lembra quando o padre César Garcia, corajosamente, abençoou um casal homoafetivo? Na época, a ação que resultou em seu afastamento do altar católico e de suas funções na igreja, apesar do clamor de parte dos fieis. Como católica e amiga, questionei publicamente a decisão do clero de afastar um líder religioso por tratar com respeito, amor e igualdade aqueles que buscavam as bênçãos divinas, no que recebi respostas baseadas em normas eclesiais que só nos distanciam da Igreja.

Hoje, dez anos após esse episódio, testemunhamos uma mudança significativa neste cenário que tanto custou ao padre César, ao casal de amigos e tantos outros que se viram em situação similar. Mesmo que o silêncio ainda prevaleça em alguns sermões locais, o papa Francisco, em sua sabedoria, anunciou, em dezembro passado, que os padres da Igreja Católica estão autorizados a abençoar relacionamentos de casais do mesmo sexo.

O documento “Fiducia supplicans” não altera a doutrina tradicional da Igreja sobre o casamento, mas reflete a visão pastoral do papa Francisco em abrir a Igreja Católica para a diversidade. Em suas palavras, “Não podemos ser juízes que apenas negam, rejeitam e excluem.” A sua reflexão oferece uma contribuição específica e inovadora para o sentido pastoral das bênçãos, permitindo ampliar e enriquecer sua compreensão, de que não se nega uma bênção àqueles que a pedem.

A bênção, agora permitida pela Igreja, é um ato que já era realizado por parte dos párocos, e vem como uma oração, um pedido a Deus por proteção e favorecimento, um ato tão bonito, singelo e amoroso, como deveria ser a natureza da nossa relação com o divino. Como operadora do Direito, vejo essa mudança como mais um passo positivo em direção à inclusão e ao reconhecimento de diversas formas de amor na nossa sociedade, em mais um aspecto.

Lembro-me do avanço da legislação diante das transformações sociais, como a equiparação das relações homoafetivas às uniões estáveis entre heterossexuais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 e a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2013, que obrigou a realização de casamentos homoafetivos em todo o país.

Embora não corrija o passado, o reconhecimento da Igreja Católica às uniões homoafetivas traz esperança de um mundo mais inclusivo e justo. Como fiel e cidadã, sinto-me satisfeita por ver a evolução nas atitudes da Igreja, demonstrando que, assim como a justiça divina, a dos homens também pode trilhar o caminho do entendimento e aceitação.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada, advogada de Família e presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos dos Idosos do IBDFAM

Publicado originalmente no jornal O Estadão (clique aqui).

Isolamento contra a vontade promovido por parte dos filhos ou curador tem se tornado mais comum. Tribunais têm aplicados princípios previstos na lei de alienação parental

Durante cinco anos, uma empresária de 54 anos, de Sorocaba (SP), ficou sem ver a mãe de 87, moradora da capital, porque as duas irmãs que cuidavam da idosa sempre criavam obstáculos à sua visita. Em julho, ela foi chamada para o velório da mãe, que adoeceu e morreu sem que ela soubesse. A idosa foi vítima de alienação parental em relação à filha caçula. Especialistas apontam que a alienação parental inversa, quando envolve idosos, tem se tornado cada vez mais comum no Brasil.

O termo surgiu em analogia à Lei 12.318/2010, que trata originalmente da relação das crianças ou filhos menores e incapazes com os pais. “É bem mais comum do que imaginamos que uma pessoa idosa seja isolada por um dos filhos ou curador contra a sua vontade e privada do convívio com parentes, amigos e até mesmo de um cônjuge ou filho”, diz a juíza aposentada Maria Luiza Póvoa Cruz, presidente da Comissão Nacional do Idoso do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam).

No caso previsto em lei, considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou adolescente promovida por um dos pais ou avós, ou pessoa que tem sua guarda, para que repudie o outro genitor ou não mantenha vínculos com ele.

Estatuto do Idoso, de 2003, não aborda a alienação parental contra pessoas acima de 60 anos, mas a legislação é usada pelos juristas por analogia, já que a prática provoca danos à saúde emocional e psicológica dos idosos.

Conforme Maria Luiza, tanto os tribunais estaduais como os superiores têm entendido que a lei que trata da alienação parental pode ser requisitada em casos semelhantes envolvendo idosos.

“Em que pese esse debate, a lei tem sua importância, reconhecida pelo legislador em 2010, e tem sido aceita pelos tribunais em práticas dessa natureza praticadas contra pessoas idosas.”

População idosa no Brasil tem crescido

Com o crescimento da população idosa, a questão ganha mais. A Organização Mundial de Saúde estima que, em 2050, cerca de 22% da população mundial terá mais de 60 anos.

Conforme o IBGE, em 2022 a população brasileira idosa chegou a 32,1 milhões, alta de 56% ante 2010, quando era de 20,5 milhões. Outro dado do instituto aponta que 2,5 milhões de mulheres brasileiras deixam de trabalhar para cuidar de parentes, sobretudo idosos.

Conforme a presidente do Ibdfam, esse envelhecimento faz com que mais pessoas se mantenham ativas por mais tempo, o que muda significativamente as estruturas familiares.

“E cada vez mais idosos integram a renda que compõe os orçamentos familiares, sobretudo das camadas mais vulneráveis da população. Isso pode levar a práticas de isolamento do idoso por um ou mais filhos em relação aos demais”, disse.

Segundo ela, é cada vez mais comum a situação em que filhos passam a administrar o patrimônio de pais idosos que estão com a saúde física e a higidez mental abaladas.

“Porém, essas pessoas não estão interditadas, mas ainda assim se veem nessa condição. Em muitos casos, pouco desse recurso chega à casa dos idosos e, nessa etapa da vida, as despesas com saúde e outros suportes necessários são enormes. Essa realidade, também, desencadeia conflitos familiares, que podem resultar em casos de alienação parental”, disse.

Para a advogada Amanda Helito, especialista em Direito de Família e Sucessões, as decisões judiciais com o fim de proteger idosos de condutas ou atos de alienação parental se tornam mais comuns, na medida em que o tema ganha destaque nos debates sociais e meios de comunicação.

Segundo ela, embora ainda não se fale em jurisprudência firmada em relação idosos, o que tem se verificado é uma tendência do Judiciário de aplicar de forma análoga à Lei de Alienação Parental em casos de atos alienatórios praticados contra essas pessoas.

“Há casos em que os atos de alienação parental têm sido interpretados pelos tribunais como maus-tratos, considerando a ausência de previsão legal de alienação parental praticada contra pessoa idosa”, afirma a advogada. A Justiça tem entendido que a convivência familiar é direito básico do idoso e não pode ser obstada sem causa justa.

‘Afronta à dignidade’

Em dezembro de 2022, a 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu por unanimidade conceder a um homem o direito de visitar sua mãe de quase 90 anos, mantendo a sentença de 1º grau que já tinha sido favorável ao filho.

Publicado originalmente no jornal O Popular (clique aqui).

Tenho a honra de carregar o nome da minha mãe, somado ao sobrenome do meu pai. Considero isso um presente que recebi desde o meu nascimento, pois trago comigo suas histórias, legados e o amor que eles tiveram por mim em vida. Compartilhar o nome com alguém é um gesto significativo e uma parte fundamental da organização da nossa sociedade.

No filme “Me chame pelo seu nome”, de 2017, amantes combinam de se chamarem um pelo nome do outro, compartilhando assim aquilo que tinham de mais precioso. Uma delicadeza sem fim, esta película que ganhou o Oscar no ano seguinte.

Desde a Idade Média, várias sociedades ocidentais adotaram sobrenomes familiares, e esse costume continua até hoje, quando os filhos, ao nascerem ou serem adotados, recebem os sobrenomes dos pais. Embora seja algo previsto em lei, não deixa de ser um gesto bonito e cheio de significado.

O nome é frequentemente considerado um dos primeiros marcos na formação da identidade de uma pessoa. Ele é atribuído desde o nascimento e é uma das maneiras pelas quais uma pessoa começa a ser reconhecida e identificada pelos outros. Mas, e se esse nome não fizer sentido na construção da sua individualidade? A possibilidade legal de mudar o próprio nome representa um avanço significativo no reconhecimento da importância da identidade pessoal.

A Lei Federal nº 14.382/22, que introduziu a possibilidade de mudança de nome diretamente em Cartório, representa um marco na busca pela dignidade e respeito às identidades individuais. Em um ano, a norma trouxe várias alterações na Lei de Registros Públicos, ampliando as opções para a alteração de nomes e sobrenomes sem a necessidade de procedimentos judiciais. Até julho deste ano, 342 pessoas mudaram de nome em Goiás após a nova lei.

A importância legal dessa conquista reside na compreensão de que cada pessoa tem o direito de escolher como deseja ser chamada, de acordo com sua identidade de gênero, convicções pessoais ou simplesmente porque não se identifica com o nome de nascimento. A dignidade está intrinsecamente ligada à possibilidade de se reconhecer e ser reconhecido pelo próprio nome, sem que este seja uma imposição externa.

Num mundo diverso e em constante evolução, a flexibilidade na escolha do próprio nome é um reflexo de uma sociedade que valoriza a individualidade e o respeito à autonomia das pessoas. Na minha família, temos mais uma Maria Luiza, minha neta, nome que recebeu de seus pais e que espero que faça sentido em sua vida adulta. Procuro honrar o nome que me foi dado pelos meus pais e fazer com que a pequena Maria Luiza sinta orgulho do seu nome de batismo. No entanto, é reconfortante saber que ela e qualquer outra pessoa tem a liberdade de escolher quais heranças desejam levar ao longo de suas vidas. A dignidade de escolher o próprio nome é um direito fundamental que merece ser celebrado e protegido.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada e advogada de Família.

Publicado originalmente no jornal O Popular (clique aqui)

Começamos fevereiro com a notícia triste do falecimento da jornalista Glória Maria, uma mulher que deixa seu nome na história do Brasil a partir do seu exercício profissional, seu estilo único de noticiar e sua presença por 50 anos na telinha das residências brasileiras.

Mas para além dos tabus quebrados por esta profissional única da televisão, também faleceu a mãe Glória Maria, deixando duas filhas ainda adolescentes. A orfandade delas se tornou preocupação de uma legião de amigos e fãs.

Mãe solo, ela adotou Laura e Maria ainda pequenas e mudou a sua vida a partir deste encontro com a maternidade. Falou diversas vezes de como suas meninas a proporcionaram um outro olhar para o mundo. Mudou a rotina, construiu outro tipo de castelo e se dedicou à educação delas.

Mas em 2019 começou a encarar o fato que marca a vida de todos nós: a possibilidade da morte. E ela não poupa nem pais, nem mães. E a sabedoria da mulher que guardava recordes de viagens pelo mundo, de tantas primeiras vezes, não faltou para ela, que bem antes disso já tinha escolhido tutores para se responsabilizarem pela educação das filhas até que as mesmas se tornem adultas.

Esta deveria ser uma preocupação de todas as famílias, sejam elas formadas por mães e pais solos ou por casais. A morte é destas fatalidades que deixamos de falar como se isso a afastasse da nossa trajetória. Mas planejar a partida é um gesto de carinho com quem fica.

A nomeação de tutores está prevista no Código Civil e deve ser feita pelos pais mediante testamento ou qualquer outro documento autêntico. Caso os pais não o façam em vida, a responsabilidade passa a ser de um juiz que decidirá a tutela a partir da nomeação de um familiar mais próximo. O tutor passa a ser responsável pela criação da criança ou adolescente até que se torne adulto e, caso existam bens, também será responsável pela administração destes.

Então, quando pensamos na tutela, devemos escolher pessoas próximas, conversar com elas e compartilhar o desejo de nomeá-las como responsáveis pela criação dos filhos em caso de falecimento. Penso que apesar de ser uma tarefa difícil, é a melhor forma de lidar com o futuro, prevenindo, escolhendo quem já faz parte da vida daquela criança.

Se deixamos para que a Justiça decida algo tão íntimo, corremos o risco de que não sejam consideradas questões que vão para além da árvore genealógica. Quem realmente faz parte da vida da nossa família, quem convive, quem tem afinidade e quem se disporia a cuidar dos nossos filhos na nossa ausência? O que Glória Maria fez é um último gesto de amor para com suas meninas.

Em um livro de crônicas, o escritor Fabrício Carpinejar discorre sobre a morte e seus impactos. Em uma delas escreveu assim: “Ninguém será lembrado pelo que morreu, mas pela postura que escolheu para viver.” Esta frase pode representar muito bem Glória Maria, mas as suas escolhas post mortem também serão lembradas por aquelas que mais sentirão sua falta: suas filhas. Foi o cuidado dela que garantiu que suas meninas tivessem segurança financeira e judicial para continuarem com suas vidas após a sua morte.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada e advogada

Maria Luiza Póvoa Cruz

Quando pensamos nas famílias e nas suas obrigações nos cercamos de preocupações com as crianças e os jovens, mas há no vínculo familiar outras responsabilidades que, muitas vezes, são relegadas e até desconhecidas. Nas situações de abandono ou de ausência dos pais, os filhos podem contar com os avós durante o seu crescimento para que sejam assegurados seus direitos básicos, como saúde e educação, e seu desenvolvimento socioemocional, tendo os avós responsabilidade legal sobre os netos. Mas e no inverso? Quem se responsabiliza pelos pais e pelos avós quando estes, na velhice, precisam tanto de assistência material quanto moral?

A relação de cuidado de pais e avós com os seus filhos e netos prevê reciprocidade ao cuidado e solidariedade. Consideramos que o núcleo familiar é construído a partir de relações de afeto e, neste sentido, é esperado o cuidado entre os membros de uma mesma família. Então, em dois extremos da nossa sociedade e dentro do Direito das Famílias, no Brasil, temos o abandono de crianças e também de idosos. Ambos acontecem em um momento de fragilidade e de falta de autonomia de uma das partes. E são cruéis e devastadores, colocando em risco seres humanos, e um passo atrás no processo civilizatório.

No caso dos avós, o Estatuto do Idoso assegura às pessoas com mais de 60 anos proteção e garantia do envelhecimento sadio e digno com acesso a todas as formas de assistência, seja ela pessoal, física ou social. Parte desta responsabilidade é do poder público e da comunidade, outra parte é da família, que deve amparar moralmente e financeiramente seus idosos. E isso não significa apenas garantir sua sobrevivência, muitas vezes já garantida pela aposentadoria ou por um serviço social, como as instituições de longa permanência, mas também o direito ao afeto, à convivência e à sua própria dignidade.

Temos no Brasil hoje cerca de 32,9 milhões de pessoas com mais de 60 anos, segundo o IBGE. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 15,7% da população idosa no Brasil está submetida a algum um tipo de violência, incluindo o abandono e a negligência.

Quantos destes avós são privados da convivência com seus netos e bisnetos, quantos foram arrimo de suas famílias e hoje estão abandonados ou ainda garantem o sustento dos seus sem que sejam cuidados ou respeitados? Pra isso não temos estatísticas, mas basta olhar para o lado, seja na fisionomia dos que vivem em situação de rua, muitos com mais de 60 anos, ou nos pedidos recorrentes dos chamados asilos por ajuda em sua manutenção.

Onde estão os filhos e os netos destes avós que, no auge de suas vidas, são esquecidos por seus herdeiros? É preciso saber que a família é uma instituição com responsabilidades compartilhadas e que cabe a cada um o cuidado com o outro, dentro da linha histórica do tempo. Para a lei, seja na Constituição ou o Estatuto do Idoso, os avós não devem ficar só nos porta-retratos ou nos nomes que carregamos em nossos documentos pessoais. Eles também são nossa responsabilidade, de afeto solidário e de cuidado responsável. São eles que garantiram nosso acesso à sociedade e somos nós que devemos garantir que eles usufruam da velhice com plenitude e segurança.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada e advogada

Publicado originalmente no portal Rota Jurídica (clique aqui).

Ficar em casa nos últimos dois anos por causa da pandemia do coronavírus trouxe prejuízos para toda a sociedade, mesmo que fosse a solução exigida para a contenção dos casos e das mortes por Covid-19. Mas enquanto a medida sanitária protegia a sociedade do avanço da doença, o isolamento agravou os casos de violência doméstica e de abandono das pessoas idosas. Distante das estruturas sociais, os idosos ficaram ainda mais desprotegidos, uma epidemia silenciosa em todo o Brasil.

No final de 2020, primeiro ano de pandemia, o número de denúncias no Disque 100 de violações aos direitos humanos contra pessoas com 60 + foi 53% maior que em 2019. No total, foram 48,7 mil registros de ligações recebidas pelo dispositivo do Governo Federal. O número assustador ainda assim é menor do que a angústia e o abandono destas vítimas.

Na contramão do êxito social que é aumentar a longevidade das pessoas está a não garantia de qualidade de vida e de segurança para quem envelhece. É como estar no topo do pódio por ter sobrevivido aos anos e aos desafios da vida em sociedade e perder a relevância para todos os atores sociais.

A longevidade da população brasileira aumenta ano a ano. Dado divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que a expectativa poderia chegar a 76,8 anos no Brasil, não fosse a crise de mortalidade causada pela Covid-19. Este aumento dos velhos na sociedade traz desafios para a família, para a sociedade e para os responsáveis pelas políticas públicas.

No próximo ano, o Estatuto do Idoso completará 20 anos e traz em sua essência a garantia dos direitos fundamentais às pessoas com mais de 60 anos, como saúde, alimentação, educação, cidadania, liberdade e dignidade.

Mas enquanto as palavras se tornaram conhecidas de toda a sociedade, a realidade destas pessoas ainda está longe do que prevê a Lei 10.741. O abandono, a fome, a violência física e emocional, o isolamento e a falta de acesso ao básico, como vacinas, atendimento médico, remédios e a própria aposentadoria são rotina no nosso país.

O que falta para nós, enquanto sociedade, que não permite assegurar àqueles que nos antecederam e que vivem agora o futuro, que deverá ser o nosso, qualidade de vida e segurança, em tempos pandêmicos ou não? É urgente pensar que somos responsáveis por cada caso envolvendo idosos vítimas de violência, porque eles são nossos pais, nossos avós, nossos tios e também nosso espelho.

É preciso que a sociedade enxergue as pessoas com mais de 60 com todas as suas singularidades e necessidades. Que ofereça a nossos idosos uma rede de apoio, baseada em serviços de qualidade e com competência para identificar situações de vulnerabilidade e violência, sejam as causadas por suas famílias, pelo entorno ou mesmo pelo poder público. Assim como as nossas crianças, os idosos também são o nosso futuro. Um garantirá a nossa continuidade; o outro é exatamente o que antecede a nossa chegada.

Redes estruturadas com assistência social, atendimento à saúde, acesso à informação e aos serviços públicos gratuitos são primordiais para os velhos, assim como visibilidade para suas necessidades, para suas expressões e também para aquilo que eles dizem e pensam.

Neste dia 15 de junho celebra-se o Dia Mundial da Consciencialização da Violência contra a Pessoa Idosa. Mas, mais do que conscientizar, precisamos urgentemente combater essa violência e sanar esta epidemia.

*Maria Luiza Póvoa Cruz é presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa do Ibdfam e presidente do I Congresso Nacional do Idoso, do Ibdfam

Publicado originalmente no jornal O Popular (clique aqui)

Há pouco mais de um ano, em abril de 2021, entrou em vigor no Brasil a Lei n° 14.132/21, que introduziu, na Parte Especial do Código Penal brasileiro (Capítulo VI, art. 147-A), penas para o crime de perseguição. Na era da Internet, essa prática ficou conhecida como stalking.

O termo tem origem na língua inglesa e deriva do verbo stalk (vigiar, espiar, ficar à espreita). Vários casos já foram levados à Justiça com base na mudança legislativa. A modalidade criminosa, nesse caso, é apontada quando alguém (stalker) passa a perseguir outra pessoa obsessivamente, causando à vitima enormes prejuízos, de ordens diversas.

Quem já sentiu sua privacidade invadida e sua liberdade restringida por essa prática reiterada sabe o quão nociva ela pode ser. Nos últimos anos, por advogar em muitos casos de divórcio, separações não consensuais, em disputas de guarda de filhos e partilha de bens, várias vezes me deparei com clientes (mulheres, em sua maioria) padecendo desse tipo de perseguição criminosa que causa, quase sempre, danos à integridade psicológica e emocional das vítimas.

Mais recentemente, porém, tornei-me eu, também, alvo da prática de stalking, conduta criminosa assumida por um estelionatário. Fui vítima de calúnia, difamação e importunada dezenas de vezes. Tentou-se atingir minha reputação, falsificaram documentos e assinaturas e disseminaram informações falsas entre meus contatos pessoais e de trabalho. Já sob o vigor da nova legislação, obtive rápida resposta do Poder Judiciário, tendo sido, o acusado, condenado.

As últimas estatísticas disponíveis apontam para um número de usuários ativos de mídias sociais crescente em todo o mundo. Somos hoje perto de 4,5 bilhões de pessoas conectadas em aplicativos de relacionamento, como o Instagram, Facebook, Twitter, entre outros. A rapidez com que as conexões humanas se dão nesses espaços torna-se instrumento poderoso nas mãos de pessoas que querem praticar esse tipo de crime. A disseminação de notícias falsas (as tenebrosas fake news) pode arruinar reputações, projetos, instituições. É preciso estar atento e forte, combatendo tais práticas, por meio de denúncias formais, e não se curvando, jamais, diante da tentativa do perseguidor de subjugar seu alvo.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada e advogada

Originalmente publicado na Revista Proteger

O isolamento social é uma das principais estratégias para reduzir a disseminação do patógeno COVID-19, o novo coronavírus (SARS-CoV-2). Há comprovações em todo planeta de que a estratégia é positiva, no entanto, segundo o portal da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, esse isolamento social tem causado alguns efeitos negativos, incluindo o aumento da violência contra idosos, crianças, adolescentes e mulheres.

‌Dentro desse grupo de vulneráveis, a violência contra o idoso ganhou uma proporção lastimável, de acordo com o Portal G1, em 2020. Já durante a pandemia, o número de denúncias de violência e de maus tratos contra os idosos cresceu 59% no Brasil. Entre março e junho do ano passado foram 25.533 denúncias. No mesmo período de 2019, foram 16.039. Como proteger nossos idosos da violência que acontece dentro de casa, no âmbito do seio familiar?

‌Dados da Organização Mundial das Nações Unidades (ONU) informam que a população mundial estimada de idosos seja de 629 milhões de pessoas. Se esse ritmo acelerado se mantiver, em 2050, o número de pessoas idosas será maior do que a quantidade de crianças abaixo dos 14 anos, cerca de 2 bilhões de idosos, ou seja, 2% da população mundial. População que, em geral, já está fora do mercado de trabalho, mas tem recursos financeiros garantidos por lei. No Brasil, 20% dos lares têm na pessoa idosa a principal fonte de renda da família. No caso dos vulneráveis, esse fato o torna ainda mais suscetível à violência doméstica.

‌A violência contra o idoso pode ser definida como “um ato único, repetido ou a falta de ação apropriada, ocorrendo em qualquer relacionamento em que exista uma expectativa de confiança que cause dano ou sofrimento a uma pessoa idosa”. O regramento legal que protege essa população tem como base o Estatuto do Idoso, estabelecido já 18 anos através da Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003, que prevê punições para os crimes cometidos contra idosos, assim como a garantia de condições mínimas de tratamento com dignidade para essa população. E este foi construído no alicerce da Constituição Federal, de 1988, que em seu artigo 230 define ser “dever da família, do Estado e da sociedade zelar pelo idoso, amparando-o e assegurando a sua participação na comunidade, defendendo a sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhe o direito à vida”.

‌Segundo o Ministério da Saúde, são vários os tipos de violência cometidos contra idosos no âmbito da família. a mais comum é a negligência, quando os responsáveis pelo idoso deixam de oferecer cuidados básicos, como higiene, saúde, medicamentos, proteção contra variação do tempo. O abandono vem em seguida e é considerado uma forma extrema de negligência. Acontece quando há ausência ou omissão dos familiares ou responsáveis, governamentais ou institucionais, de prestarem socorro a um idoso que precisa de proteção.

‌A violência física e caracterizada quando é usada a força para obrigar os idosos a fazerem o que não desejam, ferindo, provocando dor, incapacidade ou até a morte. A violência sexual ocorre quando a pessoa idosa é incluída em ato ou jogo sexual, com objetivo de obter excitação, relação sexual ou práticas eróticas por meio de aliciamento, violência ou ameaças.

‌A psicológica ou emocional é a mais sutil das violências. Inclui comportamentos que prejudicam a autoestima ou o bem-estar do idoso, entre eles, constrangimento, destruição de propriedade ou impedimento de que estejam com amigos e familiares. E, por último, a violência financeira ou material, que é a exploração imprópria ou ilegal dos idosos ou o uso não consentido de seus recursos financeiros e patrimoniais.

‌Todo a problemática enfrentada por essa população inclui também as precárias condições de vida que a maior parte dos idosos no Brasil tem que enfrentar por conta de ínfimas pensões e aposentadorias, que são insuficientes para suprir as necessidades essenciais à sua subsistência, principalmente quando tais recursos, muitas vezes, são a única fonte de renda de toda família.

‌Toda e qualquer proteção oferecida aos idosos, seja do ponto de vista, legal, constitucional ou social parte do princípio da informação. Apesar da mentalidade utilitarista da sociedade que os marginaliza, o valor legal do idoso é reconhecido, no Brasil, por meio do ordenamento jurídico. São pessoas que contribuíram, e ainda podem contribuir, para a construção de uma sociedade solidária e justa. Mas é necessário que estejam informados e que toda a sociedade tenha ciência e coloque em prática o que se preconiza na Constituição Federal e no Estatuto do Idoso. Todos os caminhos possíveis para a construção de uma rede de proteção eficiente passam por essas duas cartas legais.

‌A Assembleia Geral das Nações Unidas declarou, em dezembro de 2020, o período de 2021 a 2030 como Década do Envelhecimento Saudável. O objetivo é encorajar ações internacionais para melhorar a vida dos idosos, suas famílias e comunidades, tanto durante a pandemia de COVID-19, como depois disso. A saúde é fundamental para se ter experiências na velhice. O Brasil precisa sair da inércia em relação aos seus idosos e fazer parte das ações internacionais que promovem o bem-estar dessas pessoas. Temos capital humano para tanto, precisamos de incentivo.

‌Embora haja leis visando a proteção aos idosos e que o Estado também possui consigo um papel primordial de garantidor destes direitos Acima de tudo, o que se precisa de fato é a conscientização dos indivíduos no que se refere aos cuidados com os mais velhos. O Brasil precisa de uma sociedade participativa, contribuindo para diminuição das desigualdades e discriminações sociais de toda ordem.

Maria Luiza Póvoa Cruz

Juíza aposentada, advogada, presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa do Instituto Brasileiro de Direito de Família em Goiás (IBDFAM) e sócia-fundadora do escritório MLPC e Advogados Associados.